*Este post foi feito em 2018 porém ao reeditar meu blog aconteceu um bug e tive que retirá-lo não conseguindo colocar de volta. Por conta do momento atual achei por bem postar novamente e salvar o conteúdo já publicado que contribui com a discussão atual sobre o ” Marco Temporal” e a demarcação das terras indígenas.
A sacada humorística de Millôr que dá título a este post a cada dia faz mais sentido para mim. Sou antropóloga de formação, mas nunca estudei grupos indígenas, pesquiso cultura urbana desde sempre. Porém, em maio deste ano, quando tive a oportunidade de participar de um evento no Departamento de Psicanálise do Sedes, “Deslocamentos”, na primeira mesa, “Novas Histórias”, a questão indígena surgiu com a participação do Tiago Honório dos Santos Karai , liderança do povo Guarani Mbya, localizada em Parelheiros . O Tiago chegou no Sedes com sua companheira e filho. No lanche, um pouco antes da abertura do seminário, quando falavam entre si, usavam o tupi-guarani, quando falavam comigo, era o português. De certa forma sentia-me recepcionando estrangeiros em sua própria terra.
Até o começo do século XVIII, a proporção entre as duas línguas faladas na colônia era mais ou menos de três pra um, do tupi para o português.(…) O tupi era a língua dominante, a língua da colônia, todos a falavam ou a compreendiam, parecia mesmo haver certa predileção por ela. ( Teodoro Sampaio)
Explicaram-me que sua primeira língua, aquela em que são alfabetizados, é o tupi-guarani. A segunda é o português. Para mim a recuperação do tupi como primeira língua é uma grande conquista, usar sua língua materna e transmitir para as futuras gerações as sonoridades, a cultura e a forma de ver o mundo que vem junto com a liberdade de se expressar, resgata o direito de qualquer grupo humano de ir e vir.
Isso me levou a uma outra questão que anda tomando meus percursos pela cidade de forma recorrente. A grande quantidade de palavras indígenas que nomeiam ruas, bairros e acidentes geográficos. Meu bairro por exemplo é uma aldeia completa de nomes em tupi pendurada nos relevos montanhosos que habito: Aimberê, Turiaçu, Apinajés, Itapicuru, Traipu. Há meses , ao fazer uma pesquisa sobre Higienópolis, me dei conta que Pacaembu de Cima e Pacaembu de Baixo, correspondia a toda a região que envolve a Santa Cecília, Vila Buarque, Higienópolis e Perdizes. Todo o território de baixo e de cima estava assim nomeado pela presença do rio Pacaembu que hoje em dia passa calado embaixo da avenida de mesmo nome.
O seminário “Deslocamentos”, no Sedes, também aconteceu exatamente nesta “aldeia de nomes indígenas” que toma o bairro de Perdizes. Inevitável ao final da fala do Tiago interroga-lo sobre a quantidade de nomes e monumentos indígenas espalhados na cidade e nas várias regiões do Brasil.
Como afinal os grupos indígenas que foram dizimados desde a conquista portuguesa pareciam marcar os acidentes geográficos, as ruas, os monumentos e tomar Perdizes como uma tribo de plaquinhas azuis penduradas em mastros cinzas? Qual seria o motivo destas “demarcações” no território do conquistador?
Ele respondeu com uma frase enxuta que aquilo era um engano. E alguém na plateia completou que estas referências presentes nas ruas e relevos do território nacional eram na verdade uma descorporificação dos sujeitos.
Num fim de semana chuvoso uns dois meses depois do evento “Deslocamentos”, o nosso coletivo “Escutando a cidade” foi conhecer a aldeia do Tiago. Neste segundo encontro, ele nos convidou para conversar na “Casa de Reza”. Sentados em volta de uma fogueira, Tiago foi nos contando muitas coisas sobre a luta dos grupos indígenas de Parelheiros e a trágica história da demarcação de suas terras. Como foi difícil para eles entenderam o significado de demarcar seu território. A princípio apontaram apenas a aldeia, o lugar das casas. Porém, depois de muitos enganos e incompreensões, entenderam que este lugar da casa não incluía o lugar do caminho. No lugar da casa estavam excluídos deslocamentos, o ir e vir para outras aldeias de mesma língua, as trilhas sagradas, a possibilidade de se refazerem e de deixarem a terra mãe respirar a fim de permanecerem interagindo com a natureza.
O lugar do caminho como forma de estar no mundo me fez voltar para a questão lançada no seminário “Deslocamentos”: qual o sentido desta quantidade de nomes indígenas espalhados pelas ruas de Perdizes e do Brasil afora ? Como se deu esta “descorporificação”, este engano ?
Eduardo Viveiros de Castro veio em meu auxílio no seu livro Metafísicas Canibais ao apontar uma “outra” proposta para o tradicional registro etnográfico dos grupos indígenas. Os antropólogos teriam que fazer uma mudança radical de paradigmas para irem além do acúmulo de conteúdos sobre o “outro” fixados através dos nossos parâmetros eurocêntricos e civilizados. Trocando em miúdos, nós antropólogos registramos muitas coisas importantes sobre hábitos, cultura, língua e etc…, porém não conseguíamos ler ou ver o que registramos sem pensar em olhar para os nossos próprios espelhos. A dica de Eduardo Viveiros de Castro foi que precisávamos “aceitar a oportunidade e a relevância de pensar outramente, com outra mente, pensar com outras mentes…” como um anti- Narciso, o “padroeiro ou demônio da antropologia”.
Relendo o livro de Teodoro Sampaio, O Tupi na Geografia Nacional, depois de percorrer outros territórios e buscar “corporificar” a terra e a vida de uma aldeia pra lá do bairro de Parelheiros, consegui compreender que os portugueses, os primeiros colonizadores que aqui chegaram, assim como os jesuítas e bandeirantes, tiveram a perspicácia de compreender que os povos que habitavam a maior parte do litoral brasileiro poderiam leva-los ao interior do Brasil com muito mais facilidade do que uma aventura por conta própria, estava integrada na cultura indígena o nomadismo, os caminhos e deslocamentos.
Fazia-se a conquista, tendo por veículo a própria língua dos vencidos, que era a língua da multidão.(…) Recebiam, então, um nome tupi as regiões que se iam descobrindo e o conservavam pelo tempo adiante, ainda que nelas jamais tivesse habitado uma tribo de raça tupi. ( Teodoro Sampaio)
A língua geral transformou-se numa moeda de troca, num meio de mediar os caminhos do conquistador. “Descorporificou” os vários grupos indígenas ao marcar o percurso dos conquistadores pela língua daqueles que tinham o caminho como lugar de morada também. E assim, ao percorremos as cidades brasileiras ou adentrarmos o país, temos este atrito do desejo de conquista dos colonizadores assentados na língua geral dos índios do litoral. O conquistador nomeou nos lugares desbravados o caminho e fez do território percorrido uma nação de porteiras fechadas.
“O Brasil é o Museu do Índio” que pega fogo à menor labareda.
Leia mais:
Eduardo Viveiros de Castro, Metafísicas Canibais. Ed. Cosacnaify N-1 edições, 2015. Faço referência ao primeiro capítulo “Uma notável reviravolta” , pp 24 -25.
Descolamentos, ( org. Coletivo Escutando a cidade) Evento que ocorreu no Instituto Sedes, Departamento de Psicanálise, 4/05 e 5/05 de 2018. A fala de Tiago integrou a primeira mesa, “Novas Histórias”. Na nossa cabeça esta primeira mesa de abertura era necessária. Seria impossível discutir uma questão destas sem escutar os sujeitos em deslocamento. Os áudios e as mesas estão disponíveis no link do evento Deslocamentos
Teodoro Sampaio, O TUPI na Geografia Nacional, ed. Brasiliana , vol. 380, 1987. O capítulo que faz esta reflexão sobre o tupi e o seu predomínio na geografia nacional é o primeiro. As frases que escolhi para integrar o post fazem parte deste Teodoro Sampaio que desconhecia. Resolvi integra-lo no post por não ter palavras para recontar passagens tão bem tramadas. Estão marcadas com a cor da terra.
Como sempre, é uma delicia saborear suas matérias; parabéns!
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