O Brasil é o Museu do Índio *

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Aldeia indígena do povo Guarani Mbya, Parelheiros Foto: Pedro Robles. Julho/18

*Este post foi feito em 2018 porém ao reeditar meu blog aconteceu um bug e tive que retirá-lo não conseguindo colocar de volta.  Por conta do momento atual achei por bem postar novamente  e salvar o conteúdo já publicado que contribui com a discussão atual sobre o ” Marco Temporal” e a demarcação das terras indígenas. 

A sacada humorística de Millôr que dá título a este post a cada dia faz mais sentido para mim. Sou antropóloga de formação, mas  nunca estudei grupos indígenas, pesquiso cultura urbana desde sempre. Porém, em maio deste ano, quando tive a oportunidade de participar de um evento no Departamento de Psicanálise do Sedes, “Deslocamentos”, na primeira mesa, “Novas Histórias”, a questão indígena surgiu com a participação do Tiago Honório dos Santos Karai , liderança do povo Guarani Mbya, localizada em Parelheiros . O Tiago chegou no Sedes com sua companheira e  filho. No lanche, um pouco  antes da abertura do seminário,  quando falavam entre si, usavam o tupi-guarani, quando falavam comigo, era o português. De certa forma  sentia-me recepcionando  estrangeiros em sua própria terra.

Até o começo do século XVIII, a proporção entre as duas línguas faladas na colônia era mais ou menos de três pra um, do tupi para o português.(…) O tupi era a língua dominante, a língua da colônia, todos a falavam ou a compreendiam, parecia mesmo haver certa predileção por ela. ( Teodoro Sampaio)

Explicaram-me que sua primeira língua, aquela em que são alfabetizados,  é o tupi-guarani. A segunda é o português.  Para mim a recuperação do tupi como primeira língua é  uma grande conquista, usar sua língua materna  e transmitir para as futuras gerações as sonoridades, a cultura e a forma de ver o mundo que vem junto com a liberdade  de se expressar, resgata o direito de qualquer grupo humano de  ir e vir.

 Isso me levou a uma outra questão que anda tomando meus percursos pela cidade de forma recorrente.  A grande quantidade de palavras indígenas que nomeiam ruas, bairros e acidentes geográficos. Meu bairro por exemplo é uma aldeia completa de nomes em tupi pendurada nos relevos montanhosos que habito: Aimberê, Turiaçu, Apinajés, Itapicuru, Traipu. Há meses , ao  fazer uma pesquisa sobre Higienópolis, me dei conta que Pacaembu de Cima e Pacaembu de Baixo, correspondia a toda a região que envolve a Santa Cecília, Vila Buarque, Higienópolis e Perdizes. Todo o território de baixo e de cima  estava assim nomeado pela presença do rio Pacaembu que hoje em dia passa  calado embaixo da avenida de mesmo nome.

O seminário “Deslocamentos”, no Sedes, também  aconteceu exatamente nesta “aldeia de nomes indígenas” que toma  o bairro de Perdizes. Inevitável ao final da fala do Tiago interroga-lo sobre a quantidade de nomes e monumentos indígenas espalhados na cidade e nas várias regiões do Brasil.

Como afinal os grupos indígenas  que foram dizimados desde a conquista portuguesa pareciam  marcar os acidentes geográficos, as ruas, os monumentos e tomar Perdizes  como uma tribo de plaquinhas azuis penduradas  em mastros cinzas? Qual  seria o motivo destas  “demarcações” no território do conquistador?

Ele respondeu com uma frase enxuta que aquilo era um engano. E alguém na plateia completou que estas referências  presentes nas ruas e relevos do território nacional  eram na verdade  uma descorporificação dos sujeitos.

Num fim de semana chuvoso uns dois meses depois do  evento “Deslocamentos”, o nosso coletivo  “Escutando a cidade” foi  conhecer a aldeia do Tiago. Neste segundo encontro,  ele nos convidou para conversar na “Casa de Reza”. Sentados em volta de uma fogueira, Tiago  foi  nos contando muitas coisas sobre a luta dos grupos indígenas de Parelheiros  e a trágica história da  demarcação de suas  terras. Como foi difícil para eles entenderam o significado de demarcar seu território. A princípio apontaram apenas a aldeia, o lugar das casas. Porém,  depois de muitos  enganos e incompreensões,  entenderam que este lugar da casa não incluía  o lugar do caminho.  No lugar da casa estavam excluídos  deslocamentos, o ir e vir para outras aldeias de mesma língua, as trilhas sagradas, a possibilidade de se refazerem e de  deixarem a terra  mãe respirar a fim de permanecerem interagindo com a natureza.

O lugar do caminho como forma de estar no mundo me fez voltar para  a questão lançada no seminário “Deslocamentos”: qual o sentido desta quantidade de nomes indígenas espalhados pelas ruas de Perdizes e do Brasil afora ? Como se deu esta “descorporificação”, este engano ?

Eduardo Viveiros de Castro veio em meu auxílio no seu livro  Metafísicas Canibais ao apontar uma “outra” proposta para o tradicional registro etnográfico dos grupos indígenas. Os antropólogos teriam que fazer uma mudança radical de paradigmas para irem além do acúmulo de conteúdos sobre o  “outro” fixados  através dos nossos  parâmetros eurocêntricos e civilizados.  Trocando em miúdos,  nós antropólogos registramos muitas coisas importantes sobre hábitos, cultura, língua e etc…, porém não conseguíamos ler ou ver o que registramos sem pensar em olhar para os nossos próprios espelhos. A  dica de Eduardo Viveiros de Castro foi  que precisávamos  “aceitar a oportunidade e a relevância de pensar outramente, com outra mente,  pensar com outras mentes…” como  um anti- Narciso,  o “padroeiro ou demônio da antropologia”.

Relendo o  livro de Teodoro Sampaio, O Tupi na Geografia Nacional, depois de percorrer outros territórios e buscar “corporificar” a terra e a vida de uma aldeia pra lá do bairro de Parelheiros, consegui compreender que os portugueses, os primeiros colonizadores que aqui chegaram, assim como os jesuítas e bandeirantes, tiveram a perspicácia de compreender que os povos que habitavam a maior parte do litoral brasileiro poderiam leva-los ao interior do Brasil com muito mais facilidade do que  uma aventura por conta própria, estava integrada  na cultura indígena o nomadismo, os caminhos e deslocamentos.

Fazia-se a conquista, tendo por veículo a própria língua dos vencidos, que era a língua da multidão.(…)  Recebiam, então, um nome tupi as regiões que se iam descobrindo e o conservavam pelo tempo adiante, ainda que nelas jamais tivesse habitado uma tribo de raça tupi. ( Teodoro Sampaio)

A  língua geral  transformou-se  numa moeda de troca, num meio de mediar os caminhos do conquistador. “Descorporificou”  os vários grupos indígenas ao marcar o percurso dos conquistadores pela língua daqueles  que tinham o caminho como lugar de morada também. E assim, ao percorremos  as cidades brasileiras ou adentrarmos o país, temos este atrito do desejo de conquista dos colonizadores assentados na língua geral dos índios do litoral. O conquistador nomeou nos lugares desbravados  o caminho  e fez do  território percorrido uma nação de porteiras fechadas.

“O Brasil é o Museu do Índio”  que pega fogo à menor labareda.

Leia mais:

Eduardo Viveiros de Castro, Metafísicas Canibais. Ed. Cosacnaify N-1 edições, 2015. Faço referência ao  primeiro capítulo “Uma notável reviravolta” , pp 24 -25.

Descolamentos, ( org. Coletivo Escutando a cidade)  Evento que ocorreu no Instituto Sedes,  Departamento de Psicanálise, 4/05 e 5/05 de 2018.  A fala de Tiago integrou a primeira mesa, “Novas Histórias”. Na nossa cabeça esta primeira mesa de abertura  era  necessária. Seria impossível discutir uma questão destas sem escutar  os sujeitos em deslocamento. Os áudios e as mesas estão disponíveis no link do  evento Deslocamentos 

Teodoro  Sampaio, O TUPI na Geografia Nacional, ed. Brasiliana , vol. 380, 1987. O capítulo que faz esta reflexão sobre o tupi e o  seu predomínio na geografia nacional  é o primeiro. As frases que escolhi para integrar o post fazem parte deste Teodoro Sampaio que desconhecia. Resolvi integra-lo no post por não ter palavras para recontar passagens  tão bem tramadas.  Estão marcadas com a cor da terra.

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