Os muros barulhentos da ultima morada!!!

“ Bolsonaro matou minha filha”. Muro do Cemitério do Araçá, av. Dr Arnaldo, SP

Tudo no arquivo é silêncio mas, se você olhar em volta, verá de tempos em tempos um olho brilhando, uma mão repleta de luvas e rostos mascarados anotando um fato capturado nestes longos momentos de leitura e barulhinhos de caixas que se abrem e fecham. Eis ai um tipo singular de humano, o pesquisador de arquivos.

Para se conhecer uma cidade, não basta ler um monte de livros de história e revistar documentos antigos em arquivos. Falando assim parece que estou “cuspindo no prato que comi” a vida toda, mas isso não é verdade. Amo um livro de história, um arquivo cheio de documentos misteriosos, as descobertas que podem ser feitas através do árduo e delicioso trabalho de aguardar as caixas na sala silenciosa dos consulentes, a aventura de achar num mar de séries documentais pérolas que só o manusear lento de quem persiste nos dias consegue descobrir.

Ilustração de Paula Gabbai para o projeto Pecha Cutcha – Escola Normal Jardim da Infância

Alguns autores afirmam que os cemitérios são irmãos dos arquivos , onde os documentos tem a sua última morada também. E não é por acaso a expressão “arquivo morto”e outras tantos termos que trafegam entre um e outro.

Eu passo pelo cemitério do Araçá quase todos os dias. Já revelei num outro post que tenho um amigo que fica num dos nichos da avenida Natanael , um monumento em homenagem ao Tempo, tão bem colocado ali que foi inevitável que cruzássemos olhares e afinidades.

Ando prestando atenção nas mensagens que surgem nas paredes que fazem fronteira com as ruas, o que elas verbalizam? Dependendo da rua, do imóvel, sua conversa pode estar diretamente vinculada com o que esta por trás da sua fachada, nas suas bordas, mas também com os abalos sociais e políticos que nos afetam: um grito, uma manifestação de descontentamento, uma assinatura que sai da periferia e vem para o centro mostrar sua existência.

Os muros caiados de branco dos cemitérios cercam nossos mortos. De tempos em tempos surgem pichações bem interessantes, mensagens que compõem com a vida e a morte. Como “amortesalva”. Passei várias vezes pelo muro do Araçá até entender que além de amor te salva, também era a morte salva. Depois pintaram o muro de branco e ai desapareceu.

São registros passageiros, morrem quando o pessoal da limpeza vem pra apagar e caiar tudo outro vez. Mas enquanto permanecem, em sua maioria, são exatamente flagrantes da vida e da morte em total sintonia com a crônica dos dias.

Basta você olhar para os lados que vai ver que os muros, muitas vezes, tem suas conversas próprias. Há muros mais democráticos, menos vigiados, há outros mais privados, aqueles super vigiados, com câmeras de vídeo e cercas elétricas com dizeres imperativos de proibições explícitas.

Fico pensando nestas falas dos muros: do afaste-se, do não me toque. Tem um recorte muito nosso também. Sintomático de uma cultura que lida mal com o sentido de público e privado. É nas bordas entre o privado e o público, nos muros, que podemos ver estes conflitos históricos com muita clareza.

E se no dia de finados você visita seus mortos no silêncio da última morada, no dia a dia, os muros que cercam nossos entes queridos, podem ser barulhentos e extrovertidos.

Pare um pouco num muro qualquer da cidade e veja o que eles estão a falar. Se quiser compartilhe aqui nos comentários, vou gostar de saber.

Muro do Cemitério do Araçá, av dr Arnaldo, dia 13/10/22 com novas mensagens ! Imagem paula janovitch

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