Cracolândia: o retorno de velhas ideias para o Bom Retiro

Anteontem o governador de São Paulo cogitou na possibilidade de levar a Cracolândia para o bairro do Bom Retiro. Justificou sua escolha por conta dos equipamentos existentes no bairro.

“A mudança teria como objetivo aproximar os dependentes químicos dos equipamentos da prefeitura para atendimento à população em situação de rua, como o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas e uma unidade da Assistência Médica Ambulatorial.” ( Carta Capital, 19/07/23)

Porém, a proposta não é nenhuma novidade. Nos anos de 1940, o dr.Adhemar de Barros, interventor do Estado de São Paulo quando Getulio Vargas foi presidente do país, indicou o mesmo bairro como local de confinamento do baixo meretrício da cidade. E, por treze anos, as ruas Aimorés, Carmo Cintra e Itaboca ( atual Césare Lombroso) transformaram-se na zona de confinamento de prostitutas do Bom Retiro. A justificativa para a escolha do dr. Adhemar merece ainda mais investigações.

Alguns pesquisadores apontam para uma fala do interventor que parece ter dito à época: “ os judeus que criaram a prostituição, eles que fiquem com elas”. O que ele quis dizer com isso? Provavelmente se referia a prostituição judaica nas grandes cidades latino-americanas que por várias décadas ocupou os meios de comunicação e foi pauta de inúmeras campanhas policiais.

Ao longo da década de 1930, a expulsão de cafetões e comunistas e, dentre eles, muita gente de origem judaica, colocou o Bom Retiro como um território a ser controlado pelas autoridades. Levar a zona de prostituição para o bairro judaico era como colocar o “bode na sala”.

A Gazeta, 18/07/33

Mas ainda havia o fato que naquele momento a área central da cidade passava por radicais remodelações urbanas e a prostituição concentrada no bairro de Santa Ifigênia, tornava-se um obstáculo para o Plano de Avenidas de Prestes Maia.


Assim, podemos entender que o deslocamento da prostituição para o Bom Retiro, também fez parte de uma das estratégias do Estado a fim de “limpar” Santa Ifigênia dos cortiços, casas de cômodos e pensões noturnas a fim de efetivar as remodelações daquela área.

São diversas as associações entre “limpeza”, higiene, prostituição, sujeira e doença. Neste sentido o confinamento do baixo meretrício no Bom Retiro teve de fato inúmeras justificativas, inclusive a retirada de uma população “ indesejável” da área central.

Sua presença entre as duas pequenas ruas paralelas à vida comercial da rua José Paulino durante treze anos também deixou marcas no Bom Retiro.

Apesar da grande visibilidade das prostitutas judias, “as polacas” eram de fato um grupo minoritário dentre uma população de mais ou menos 1500 pessoas que frequentaram a zona de confinamento do Bom Retiro ao longo de sua existência.

Mas, por este grupo possuir registros de estrangeiros, obrigatório à época, e por estarem constantemente sobre a vigilância da polícia, surgiram em destaque nos registros oficiais.

Por outro lado, a instalação da zona do meretrício , também justificava-se por ser um possível local em que seriam experimentados novos tipos de tratamento de doenças venéreas e de aprimoramento do controle da prostituição na cidade.

Foto Elvira Furlan, 1950. Posto anti-venéreo instalado na zona de confinamento do baixo meretrício do Bom Retiro. Percurso Paula Janovitch, 2022

Na versão oficial do decreto que oficializou a zona de confinamento do Bom Retiro em 1940 isso fica bem claro: nas duas estreitas ruas do Bom Retiro seriam instalados postos anti-venéreos para experimentos de tratamentos nos corpos das mulheres que ali trabalhavam.

Foto Elvira Furlan , registro da antiga zona do meretrício do Bom Retiro

O fim da zona do meretrício do Bom Retiro em 1953 por um outro decreto do governador Lucas Nogueira Garcez, expressou a ineficácia do confinamento e de suas práticas.Porém, a mudança de nome da rua Itaboca em 1957 para a atual rua Cesare Lombroso, aponta para mais um capítulo emblemático da história do Bom Retiro.

Pra quem não sabe Cesare Lombroso foi médico e um dos precursores da criminologia no final do século 19. Um dos seus livros mais conhecidos é o Homem Delinquente em que o autor associa aspectos genéticos e físicos aos criminosos. É dele também um outro livro menos conhecido, A Mulher Delinquente, em que pela mesma lógica do anterior busca explicar a prostituição através da herança genética e uma série de classificações dos tipos de comportamento das mulheres a fim de demonstrar o quanto estas devem ter seus instintos controlados.

Cartaz elaborado pela Casa do Povo/ Paula Janovitch que foi distribuído e fixado no Bom Retiro em 2019

A escolha de nome da rua para Professor Cesare Lombroso em 1957, deve-se a popularização de Lombroso ao longo do século 20. Conforme o processo-lei que autoriza a alteração , a escolha do seu nome no logradouro se deu para “ limpar a rua das tristes memórias”.

Quando o governador Tarcisio de Freitas indica o Bom Retiro como um possível local para a Cracolândia, bairro que estaria afastado de escolas, residências e com bons equipamentos públicos de tratamento, é difícil não pensar no retorno de práticas antigas em suas novas sugestões.

Quem quiser saber mais sobre a zona do Bom Retiro, convido para o percurso que faço em breve na Jornada do Patrimônio Histórico que ocorrerá no dia 19/08 às 10:00. Ponto de encontro: entrada do Sesc Bom Retiro, al Nothmann, 185

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